Questões de Concurso Militar ESCOLA NAVAL 2019 para Aspirante - 2ª Dia
Foram encontradas 20 questões
Ano: 2019
Banca:
Marinha
Órgão:
ESCOLA NAVAL
Prova:
Marinha - 2019 - ESCOLA NAVAL - Aspirante - 2ª Dia |
Q1050649
Português
Texto associado
TEXTO 01
Leia o texto abaixo e responda à questão.
Felicidade clandestina
Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos
excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto
enorme; enquanto nós todas ainda éramos achatadas.
Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa,
por cima do busto, com balas. Mas possuía o que
qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter:
um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para
aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela
nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai.
Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde
morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás
escrevia com letra bordadíssima palavras como "data
natalícia" e "saudade".
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda
era pura vingança, chupando balas com barulho. Como
essa menina devia nos odiar, nós que éramos
imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de
cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o
seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as
humilhações a que ela me submetia: continuava a
implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a
exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como
casualmente, informou-me que possuía “As reinações de
Narizinho’’, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para
se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E
completamente acima de minhas posses. Disse-me que
eu passasse peia sua casa no dia seguinte e que ela o
emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria
esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar
num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente
correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim
numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para
meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a
outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para
buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a
esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na
rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de
andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias
seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor
pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como
sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano
secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e
diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua
casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a
resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder,
que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais
tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com
ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela
sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não
escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes
adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como
se quem quer me fazer sofrer esteja precisando
danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem
faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve
comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de
modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era
dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os
meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua
casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu
sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e
diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu
explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa,
entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora
achava cada vez mais estranho o fato de não estar
entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se
para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este
livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do
que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha
que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de
perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura
em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi
então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma
para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E
para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo
quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "peio
tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande
ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava
estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu
não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como
sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o
livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o
peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também
pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração
pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que
não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas
depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de
novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer
pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o
livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as
mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que
era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina
para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu
vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma
rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me
com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase
puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma
mulher com o seu amante.
LISPECTOR, Clarice. O Primeiro Beijo. São Paulo: Ed. Ática, 1996
Assinale a opção que apresenta um exemplo de uso
denotativo da linguagem.
Ano: 2019
Banca:
Marinha
Órgão:
ESCOLA NAVAL
Prova:
Marinha - 2019 - ESCOLA NAVAL - Aspirante - 2ª Dia |
Q1050650
Português
Texto associado
TEXTO 01
Leia o texto abaixo e responda à questão.
Felicidade clandestina
Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos
excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto
enorme; enquanto nós todas ainda éramos achatadas.
Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa,
por cima do busto, com balas. Mas possuía o que
qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter:
um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para
aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela
nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai.
Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde
morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás
escrevia com letra bordadíssima palavras como "data
natalícia" e "saudade".
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda
era pura vingança, chupando balas com barulho. Como
essa menina devia nos odiar, nós que éramos
imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de
cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o
seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as
humilhações a que ela me submetia: continuava a
implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a
exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como
casualmente, informou-me que possuía “As reinações de
Narizinho’’, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para
se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E
completamente acima de minhas posses. Disse-me que
eu passasse peia sua casa no dia seguinte e que ela o
emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria
esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar
num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente
correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim
numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para
meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a
outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para
buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a
esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na
rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de
andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias
seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor
pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como
sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano
secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e
diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua
casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a
resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder,
que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais
tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com
ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela
sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não
escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes
adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como
se quem quer me fazer sofrer esteja precisando
danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem
faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve
comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de
modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era
dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os
meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua
casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu
sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e
diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu
explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa,
entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora
achava cada vez mais estranho o fato de não estar
entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se
para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este
livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do
que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha
que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de
perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura
em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi
então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma
para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E
para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo
quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "peio
tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande
ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava
estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu
não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como
sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o
livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o
peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também
pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração
pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que
não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas
depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de
novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer
pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o
livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as
mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que
era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina
para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu
vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma
rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me
com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase
puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma
mulher com o seu amante.
LISPECTOR, Clarice. O Primeiro Beijo. São Paulo: Ed. Ática, 1996
Leia o trecho a seguir.
“Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim.” (14°§)
Assinale a opção que explicita o sentido de “felicidade clandestina”, segundo a perspectiva da narradora do texto.
“Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim.” (14°§)
Assinale a opção que explicita o sentido de “felicidade clandestina”, segundo a perspectiva da narradora do texto.
Ano: 2019
Banca:
Marinha
Órgão:
ESCOLA NAVAL
Prova:
Marinha - 2019 - ESCOLA NAVAL - Aspirante - 2ª Dia |
Q1050651
Português
Texto associado
TEXTO 01
Leia o texto abaixo e responda à questão.
Felicidade clandestina
Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos
excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto
enorme; enquanto nós todas ainda éramos achatadas.
Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa,
por cima do busto, com balas. Mas possuía o que
qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter:
um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para
aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela
nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai.
Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde
morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás
escrevia com letra bordadíssima palavras como "data
natalícia" e "saudade".
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda
era pura vingança, chupando balas com barulho. Como
essa menina devia nos odiar, nós que éramos
imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de
cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o
seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as
humilhações a que ela me submetia: continuava a
implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a
exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como
casualmente, informou-me que possuía “As reinações de
Narizinho’’, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para
se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E
completamente acima de minhas posses. Disse-me que
eu passasse peia sua casa no dia seguinte e que ela o
emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria
esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar
num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente
correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim
numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para
meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a
outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para
buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a
esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na
rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de
andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias
seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor
pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como
sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano
secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e
diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua
casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a
resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder,
que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais
tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com
ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela
sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não
escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes
adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como
se quem quer me fazer sofrer esteja precisando
danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem
faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve
comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de
modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era
dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os
meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua
casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu
sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e
diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu
explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa,
entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora
achava cada vez mais estranho o fato de não estar
entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se
para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este
livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do
que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha
que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de
perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura
em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi
então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma
para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E
para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo
quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "peio
tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande
ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava
estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu
não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como
sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o
livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o
peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também
pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração
pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que
não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas
depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de
novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer
pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o
livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as
mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que
era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina
para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu
vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma
rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me
com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase
puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma
mulher com o seu amante.
LISPECTOR, Clarice. O Primeiro Beijo. São Paulo: Ed. Ática, 1996
Leia o trecho a seguir.
“A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu." (11°§)
Que opção destaca a sequência dos sentimentos que caracterizam a reação dessa “mãe boa", ante o comportamento da filha?
“A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu." (11°§)
Que opção destaca a sequência dos sentimentos que caracterizam a reação dessa “mãe boa", ante o comportamento da filha?
Ano: 2019
Banca:
Marinha
Órgão:
ESCOLA NAVAL
Prova:
Marinha - 2019 - ESCOLA NAVAL - Aspirante - 2ª Dia |
Q1050652
Português
Texto associado
TEXTO 01
Leia o texto abaixo e responda à questão.
Felicidade clandestina
Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos
excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto
enorme; enquanto nós todas ainda éramos achatadas.
Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa,
por cima do busto, com balas. Mas possuía o que
qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter:
um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para
aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela
nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai.
Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde
morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás
escrevia com letra bordadíssima palavras como "data
natalícia" e "saudade".
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda
era pura vingança, chupando balas com barulho. Como
essa menina devia nos odiar, nós que éramos
imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de
cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o
seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as
humilhações a que ela me submetia: continuava a
implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a
exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como
casualmente, informou-me que possuía “As reinações de
Narizinho’’, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para
se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E
completamente acima de minhas posses. Disse-me que
eu passasse peia sua casa no dia seguinte e que ela o
emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria
esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar
num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente
correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim
numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para
meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a
outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para
buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a
esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na
rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de
andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias
seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor
pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como
sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano
secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e
diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua
casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a
resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder,
que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais
tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com
ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela
sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não
escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes
adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como
se quem quer me fazer sofrer esteja precisando
danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem
faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve
comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de
modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era
dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os
meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua
casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu
sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e
diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu
explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa,
entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora
achava cada vez mais estranho o fato de não estar
entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se
para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este
livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do
que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha
que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de
perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura
em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi
então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma
para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E
para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo
quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "peio
tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande
ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava
estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu
não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como
sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o
livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o
peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também
pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração
pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que
não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas
depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de
novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer
pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o
livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as
mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que
era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina
para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu
vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma
rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me
com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase
puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma
mulher com o seu amante.
LISPECTOR, Clarice. O Primeiro Beijo. São Paulo: Ed. Ática, 1996
Leia a frase abaixo.
“Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas.” (1°§)
Assinale a opção em que o conectivo apresentado substitui a conjunção sublinhada na frase acima, mantendo o mesmo valor semântico e a mesma relação sintática.
“Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas.” (1°§)
Assinale a opção em que o conectivo apresentado substitui a conjunção sublinhada na frase acima, mantendo o mesmo valor semântico e a mesma relação sintática.
Ano: 2019
Banca:
Marinha
Órgão:
ESCOLA NAVAL
Prova:
Marinha - 2019 - ESCOLA NAVAL - Aspirante - 2ª Dia |
Q1050653
Português
Texto associado
TEXTO 02
Leia o texto abaixo e responda à questão.
Não, os livros não vão acabar
Não sei se é a próxima chegada da Amazon ao
Brasil ou a profecia maia do fim do mundo, mas o fato é
que nunca vi tanta gente preocupada com o fim do livro.
São estudantes que me escrevem motivados por
pesquisas escolares, organizadores de eventos literários
que me pedem palestras, leitores que manifestam sua
apreensão. Em alguns casos, percebo uma espécie
perversa de prazer apocalíptico, mas logo desaponto
quem quer ver o mar pegando fogo para comer camarão
cozido: é que absolutamente não acredito que o livro vai
acabar.
Tenho escrito reiteradas vezes sobre o assunto;
estou, aliás, numa posição bastante confortável para fazê-lo. Gosto igualmente de livros e de tecnologia, e seria a
primeira a abraçar meus dois amores reunidos num só
objeto; mas embora o Kindle e os vários pads tenham o
seu valor como readers, os livros em papel não estão tão
próximos da extinção quanto, digamos, o tigre de Sumatra.
Para começo de conversa, é preciso lembrar que
o negócio das editoras não é vender papel, mas sim
vender histórias. O papel é apenas o suporte para os seus
produtos. Aos poucos, em alguns casos, ele tende a ser
mesmo substituído pelos tablets. Não dou vida longa aos
livros de referência em papel. Estes funcionam melhor, e
podem ser mais facilmente atualizados, em forma
eletrônica. O caso clássico é o da Enciclopédia Britannica,
cujos editores anunciaram, no começo do ano, que a
edição corrente, de 2010, seria a última impressa,
marcando o fim de 244 anos de uma bela - e volumosa -
história em papel.
Embora quase todos os conjuntos de folhas
impressas reunidos entre duas capas recebam o mesmo
nome de livro, nem todos exercem a mesma função. Há
livros e livros. Um manual técnico é um animal
completamente diferente de um romance; um livro escolar
não guarda nenhuma semelhança com um livro de arte;
uma antologia poética e um guia de viagem são produtos
que só têm em comum o fato de serem vendidos no
mesmo lugar.
Há livros que só funcionam em papel. É o caso
dos livros que os povos angloparlantes denominam coffee
table books, “livros de mesinha de centro” - aqueles livrões
bonitos, em formato grande, cheios de ilustrações e muito
incômodos de ler no colo, impossíveis de levar para a
cama. Estes são objetos que se destacam pelo tamanho,
pela qualidade de impressão, pela vista que fazem. Quem
quer ver um livro desses num tablet? Quem quer
presentear um desses em e-formato?
Há também os grandes clássicos, os romances
que todos amamos e queremos ter ao alcance da mão.
Esses são aqueles livros que, em geral, lemos pela
primeira vez em formato de bolso, mas aos quais nos
apegamos tanto que, não raro, acabamos comprando uma
segunda edição, mais bonita, para nos fazer companhia
pelo resto da vida.
Isso explica as lindas edições que a Zahar, por
exemplo, tem feito de obras que já encantaram várias
gerações, como “Peter Pan”, “Os três mosqueteiros" ou “Vinte mil léguas submarinas”: livros lindos de se ver e de
se pegar, cujo esmero físico complementa a edição
caprichada. Ganhar de presente um livro desses é uma
alegria que não se tem com um vale para uma compra
eletrônica. Fica a dica, aliás, já que o Natal vem aí.
Há prazeres e sensações que só tem com o papel.
Gosto de perceber o tamanho de um livro à primeira vista.
Um tablet pode me informar quantas páginas um volume
tem, mas essa informação é abstrata. Saber que um livro
tem 500 páginas ou ver que um livro tem 500 páginas são
coisas diferentes. Gosto também de folhear um livro e de
fazer uma espécie de leitura em diagonal antes de me
decidir pela compra. Isso é impossível de fazer com
ebooks.
Sem falar, é claro, do cheiro inigualável dos livros
em papel.
RÓNAI, Cora. Jornal O Globo, Economia, 12.11.2012
Em que opção a autora empregou o paralelismo?